Colos, cólicas, chavões e uma crônica de continuação

por Henrique Matos
(Continuação da carta anterior)

- Amor, vem cá! Aconteceu uma coisa estranha...

Eram os primeiros minutos do dia 19 de março de 2007, madrugada de domingo para segunda-feira. Eu acabara de fechar a tela do computador onde escrevia minha última mensagem, falando sobre minha esposa, a beleza da gravidez e as pequenas surpresas que Deus nos faz. Já calçava os chinelos e me preparava para ir para a cama quando ouvi sua voz vindo lá do banheiro. "Coisa estranha", que raios seria isso? Corri para checar.

A bem da verdade, estranho era ouvi-la falar assim. Vindo do banheiro, chamados mais comuns diziam respeito a "Amor, me traz a toalha?", "Por que você não abaixa a bendita tampa do vaso?" ou, tão comuns quanto, desesperos hitchcockianos que berravam "Henrique-corraqui-pelamordedeus-porque-tem-uma-mariposa-enorme-no-box!".

Cheguei no banheiro, ela estava de pé em frente ao vaso, uma expressão curiosa naquele rosto meigo e o dedo apontando para algumas gotas avermelhadas no tapete. Olhei para ela, olhei para o tapete, olhei para ela:

- É, neguinha, das duas uma: ou estourou sua bolsa ou sua bexiga está frouxa...
- Bobo.

Alguns telefonemas e uma hora depois, preparávamos as malas para seguir até a maternidade. Nada garantia que a hora do parto havia chegado, mas nada também nos fazia acreditar no contrário. Nove meses se passaram e aquele me parecia o primeiro momento real dessa gravidez.

Malas nas mãos, chaves no bolso, caminhávamos pelo corredor rumo a porta da sala quando nos entreolhamos. Olhamos para a casa que deixávamos e concordamos:

- Quando voltarmos... seremos três.

Chuva. Escuridão na rua. Vai devagar! Hospital vazio. Acabou a energia, subiremos de escada. Enfermeira com sono. Boa noite. Exames estranhos. Telefonemas para a médica. Vai nascer. Ai, ai, ai! Cadastros infindáveis na recepção. Minha esposa saindo pelo corredor em uma maca. Elevador parado, mais escadas. Eu recebendo uma trouxa com roupas. Vestiário médico. Touca, máscara, protetores. Centro cirúrgico. Nossa amiga Amanda na sala de cirurgia. É bom ter um rosto conhecido por perto. Olá, essa é a equipe médica. Como vão, tudo bem? Ar-condicionado gelado. Cadê o fotógrafo? Oi amor, você está bem? Está nascendo! São três e vinte da manhã. Estava com o cordão enrolado no pescoço. Tire as fotos! Esqueça as fotos, quero vê-la nascer. Nascendo, nascendo, está saindo... Olha a Nina, que bebezão! Linda, maravilhosa! Vão cortar o cordão. Um beijo na Manú. Parabéns, agora você é mãe. Te amo. Eu também, muito. A enfermeira vindo. Olhe mamãe, sua filha! Que linda. Veja papai, sua filha. Posso pegar? Só se for rápido, ela precisa ir para o... Tá bom, é rapidinho.

Eu a tomo nos braços, o tempo pára, ela aquieta, meu coração acelera, a respiração ofegante, aquele rostinho, eu a observo estático, meus olhos marejam, lacrimejam, se fecham, eu choro e choro. É verdade, eu sou pai. Meu Deus, obrigado! Ela é sua, meu Pai, ela é toda sua. Obrigado.

- Oi Nina, minha filha, eu sou seu pai, seja bem vinda! – e eu contente por ter dito o que planejei.

As horas que se seguiram foram de algum sentimento que até agora não sei dizer. Vivenciei todos os chavões que uma canção romântica poderia expressar. “Uma sensação indescritível”, “sentimento único”, “amor que rasga o peito”... tantos que quase me via num balbuciar sertanejo. Num transe abobado, eu conversava animadamente com enfermeiras, seguranças, manobristas e comigo mesmo.

Enquanto minhas mulheres não vinham, sentei sozinho naquele quarto escuro. Eram quase seis da manhã quando abri meu bloco de notas e tentei escrever os detalhes sobre as últimas horas que vivi. Não consegui. Desde então, venho pensando em uma forma de registrar os momentos, as emoções, os passos daquela noite para que minha memória fraca não falhe ao tentar lembrar de um dos dias mais incríveis da minha vida.

Foram 39 horas ininterruptas, acordado e vendo minha vida mudar. Amigos, familiares, gente querida nos cercando, o telefone tocando. E depois desse dia, já passaram-se mais de dois meses. E vemos que as semanas seguem e nos levam aos passos inevitáveis de todos os pais, com os choros indecifráveis, colos, cólicas, listas de dúvidas para o pediatra, leite a cada três horas, corridas desesperadas para o hospital, livros de orientação, uma vontade de ter aquele bebê grudado em nós para não deixá-la desprotegida.

Eu, na verdade, queria poder carregar as duas no meu colo e permitir que elas se sentissem seguras. Mas não tenho bíceps e capacidade para tanto. Aliás, nem mesmo tenho a segurança que gostaria. Isso não está em mim, apesar da pose. Isso sim, eu sei, encontro no bom Pai que, nesses dias, está nos ensinando a ser pais.

E eu queria também escrever uma carta. Duas, na verdade. Uma para a nova mãe que vi nascer naquela noite. Outra, para a filha que verei crescer sob meus olhos atentos. Para minha esposa, pensava em registrar todo sentimento, amor, respeito, carinho, apoio, dedicação e tanto mais de coisas que gostaria que ela soubesse que eu sinto e quero viver ao seu lado. Para minha filha, pretendia deixar os grandes conselhos e princípios que, imagino, ela deverá ter, e assinar de próprio punho tudo o que sinto, penso e sonho para sua vida. Mas não consigo.

Foram dias de rabiscos mentais e tentativas vãs. Frustrado, demorei a aceitar a falta de inspiração, quando era justamente essa que não me faltava. Me vi então diante de uma única resposta possível para esse momento. Não, não foi num versículo bíblico como era de se esperar, tão pouco foi em uma frase devastadora de Shakespeare e ainda menos em um verso derradeiro nalgum poema de Fernando Pessoa. Foi sim, outra vez, num velho chavão, que encontrei orientação: “essa história não se escreve, essa história se constrói”. Ora, detesto chavões. Mas são eles mesmos, como diria um pensador, “uma verdade desgastada”.

Pois é, para minhas amadas, espero um dia ter mais do que verdades gastas para declarar. Espero e me esforço por um poema na ponta da pena para poder lhes escrever. Ao longo da vida juntos, nos gestos da rotina, nos presentes, nas flores enviadas de surpresa, nos passeios de fim de tarde, nas orações feitas à mesa, nos clássicos momentos no sofá, na corrida cotidiana que insiste em acelerar, enquanto trago o leite, o pão e o jornal do domingo de manhã, enquanto vejo o futebol na TV, o programa infantil ou a novela das oito. Nos nossos dias, às minhas queridas espero poder escrever e renovar minha declaração apaixonada.

Continuo acreditando no que agora testifico. E sigo também, na observação contemplativa daquele pequeno tesouro dormindo no berço e imaginando que o Criador fez uma vida nova brotar no ventre de minha Manú. A Nina que nasceu há dois meses e que não tem mais fim, é eterna, é assim, ora bolas, a eternidade divina frutificando do nosso amor.

E encontro novamente paz, em uma verdade nada desgastada, que proclama: “Eu te louvarei, porque de um modo tão admirável e maravilhoso fui formado; maravilhosas são as tuas obras, e a minha alma o sabe muito bem. Os meus ossos não te foram encobertos, quando no oculto fui formado, e esmeradamente tecido nas profundezas da terra. Os teus olhos viram a minha substância ainda informe, e no teu livro foram escritos os dias, sim, todos os dias que foram ordenados para mim, quando ainda não havia nem um deles.” (Salmo 139:14-16).

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